Que Jair Messias Bolsonaro é dado a golpismos, isso se sabe desde que ele era um obscuro deputado vivendo nas sombras limítrofes do baixo clero da Câmara. Basta ler qualquer declaração dele dada nas três décadas em que habitou naquele mundo de rachadinhas e migalhas do grande butim das lideranças.
Presidente, o capitão (reformado para evitar a expulsão por indisciplina do Exército) deu sinais crescentes acerca de suas intenções, em especial após o “test-drive” do primeiro ano no cargo.
A pandemia e seu embate com os estados acerca do manejo sanitário lhe deram campo fértil para exercitar autoritarismos, ainda que de forma ritmada.
Para cada sístole aguda de golpismo, como em 2020 e 2021, vinha uma diástole de composição e cooptação mútua com o antigo establishment de cujas franjas se originou.
O resultado mais acabado ocorreu no 7 de Setembro do ano passado, quando ultrapassou as linhas vermelhas todas só para entregar o governo ao centrão e viabilizar sua candidatura no próximo outubro.
O elemento militar sempre foi operado de forma simbólica por Bolsonaro, que cercou-se no governo de generais de pijama (quando não fardados, como Eduardo Pazuello) como forma de asseverar um poder que nunca teve integralmente nos serviço ativo das Forças.
No começo deste ano, uma série de sinalizações externas indicou um descolamento delas dos planos do chefe. Agora, isso mudou ao menos na superfície.
A revelação de toda a extensão dos questionamentos do Exército ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostra uma Força a serviço de seu comandante-em-chefe —as questões iniciais indicavam um caráter mais técnico e desautorizavam a ideia golpista, mas agora fica clara a busca de discurso para o bolsonarismo.
Conversando com oficiais-generais em altos postos, a tendência fardada é a de minimizar o episódio e manter o discurso de que ninguém vai apoiar uma escalada autoritária.
Pode ser, mas a instrumentalização está colocada de forma clara agora, o que gera dúvidas acerca do comportamento em caso de a violência potencial apontada pelo próprio Exército irromper no pós-pleito.
Concorre para isso uma manobra de Bolsonaro, que foi a de trazer o general Paulo Sérgio Oliveira do Exército para o Ministério da Defesa. PS, como é chamado, era um contraponto às ideias mais radicais do chefe enquanto estava chefiando o Alto-Comando.
Agora, de terno, tem obedecido —sua opção é emular seu antecessor Fernando Azevedo e pedir o boné.
Houve, claro, os erros de Luís Roberto Barroso, ministro o Supremo que presidia o TSE quando a corte piscou para as ameaças bolsonaristas.
Criou uma comissão de transparência e convidou um general a integrá-la. Como disse Bolsonaro ironicamente, ele esqueceu que chamar um militar significa chamar seu comandante supremo.
Ovo da serpente posto, foi questão de tempo para a operação ganhar contornos claros.
Barroso ainda cometeu um erro tático de bônus ao criticar as Forças Armadas em meio ao desgaste do embate em torno da figura do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), o bolsonarista secundário que foi condenado pelo Supremo e perdoado pelo presidente.
Para complicar o cenário, oficiais-generais das três Forças têm ojeriza ao ora líder da corrida eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e não viram emergir uma terceira via viável. Se um episódio como o do tuíte de 2018 ou uma ruptura pareçam distantes, não é imaginária a má vontade fardada com o ex-presidente.
Isolado, o Judiciário está na defensiva, apesar de reuniões aqui e ali para tentar mostrar normalidade.
A live de Bolsonaro nesta quinta-feira (5) acabou de desenhar o golpe dos sonhos do presidente. Ele disse que seu partido, o PL, irá contratar uma auditoria externa para, em talvez 40 dias, dizer se as urnas eletrônicas são seguras.
Isso é uma afronta bizarra ao edifício da eleição, não menos porque dinheiro público será usado para tal empreitada, numa semana que começou com o presidente em atos contra o Supremo.
É evidente que a espuma servirá para deixar as redes sociais alertas e, assim como caso das “provas” (aspas compulsórias) de que Bolsonaro teria ganho no primeiro turno de 2018 que nunca foram mostradas, quando ela espraiar não haverá substância alguma.
Chama a atenção a presença ativa do centrão no processo, também. Assim como os militares, a relação de cooptação com o presidente sempre foi de duas mãos. PL, PP e afins sempre trataram a ocupação do governo e a transferência do real poder para o esquema de emendas opacas em curso como uma vitória final.
Afinal, ganhe Bolsonaro ou Lula, diz o ditado, o centrão estará com o vencedor ao fim.
Mas a associação direta com um arranjo que como consequência última pode significar a impugnação dos votos dos seus próprios membros só insinua duas coisas: participação num esquema golpista ou a crença de que é só barulho eleitoral inócuo.
Nenhuma das duas opções é aceitável, institucionalmente. Usando o roteiro deixado por seu ídolo Donald Trump na invasão do Capitólio de 2021, Bolsonaro pode não conseguir dar um golpe por falta de capacidade operacional, mas a crise está garantida.
Folha
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