A CPI da Covid ouve nesta quarta-feira a médica Luana Araújo, que ficou menos de duas semanas no cargo de secretária de Enfrentamento à Covid-19 no Ministério da Saúde. Crítica do tratamento precoce, a médica infectologista o comparou à ideia da terra plana. Ela chamou ainda a discussão sobre o uso de medicamento sem eficácia para tratar o coronavírus de “delirante”.
— Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Ainda estamos discutindo uma coisa sem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de qual borda da terra plana vamos pular — disse, em respsota ao relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL).
Renan citou frases do presidente Jair Bolsonaro e questionou a médica sobre a defesa do mandatário pelo tratamento precoce e o estimulo à população em abandonar medidas não farmacológicas, como uso de máscara, distanciamento social, lavar as mãos. Luana respondeu:
— Eu vi declarações de muitas pessoas, também do presidente. A gente precisa multiplicar lideranças com informações corretas. Na hora que qualquer pessoa, independente do seu cargo, sua posição social, defende algo que não tem comprovação cientifica você expõe a população do seu grupo a uma situação de vulnerabilidade — disse Luana, completando: — Todo mundo que diz isso tem responsabilidade do que acontece depois.
Luana foi convidada pelo ministro para ser secretária de Enfrentamento à Covid-19. Dias depois, quando a nomeação dela sequer tinha saído, ela deixou o ministério. Em audiência na Câmara, Queiroga deu a entender que houve veto de Bolsonaro. A medica afirmou que “provavelmente não aceitaria” se fosse convidada hoje para o cargo, principalmente devido à exposição. Ela negou ter conhecimento de um “gabinete paralelo” no governo e também de ter conhecido o filho do presidente Carlos Bolsonaro ou outra pessoa da família.
Sobre as ameaças que recebeu, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) questionou se foram identificadas, Luana disse que elas sempre foram ligadas ao “pseudo tratamento precoce” e a medidas de tratamento não farmacológico que ela defende. A infectologista também lamentou qualquer a possibilidade do veto ao seu nome para o cargo no ministério estar ligado ao seu posicionamento em favor da ciência:
—- A mim só me resta lamentar. Se foi [o motivo] eu considero trágico.
Defensores do uso de remédios como a cloroquina contra a Covid-19 costumam citar a autonomia médica como justificativa. Luana disse, porém, que a autonomia é baseada em alguns pilares que precisam ser observado.
— Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação. A autonomia precisa ser defendida sim, mas com base em alguns pilares. No pilar da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, no pilar da ética e no pilar da responsabilização. Quando junta tudo isso, você tem direito a uma autonomia e precisa fazer o melhor para seu paciente — disse Luana.
Em relação ao papel do Conselho Federal de Medicina (CFM), que também defende que o médico é autônomo e responsável pelos seus atos, Luana disse que é “bastante temerário colocar nas costas dos médicos” a responsabilidade de usar uma medicação que não tem eficácia. Ela citou, por exemplo, que muitos pacientes passaram a exigir medicamentos que não tem comprovação contra o coronavírus.
— Eu considero que a classe médica foi muito exposta. Exposta de uma maneira não positiva neste momento e foi grande parte dela colocada em oposição à população. Muitos médicos se sentiram coagidos.
Sobre o TrateCov, aplicativo desenvolvido pelo Ministério de Saúde para oferecer medicamentos do chamado tratamento precoce, Luana afirmou que ele nunca esteve em “seu radar”.
— Acho que algoritmos técnicos são importantes, mas não podem apontar para terapias que não funcionam — afirmou.
Luana também chamou a atenção para a vacinação da população de Serrana (SP), que alcançou resultados positivos, para dizer como é importante vacinar muita pessoas em pouco tempo. Toda a população adulta da cidade recebeu a CoronaVac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan, como parte de um estudo. O resultado foi uma queda de 95% nas mortes, e a conclusão de que a pandemia pode ser controlada se 75% das pessoas forem vacinadas.
Já sobre a tese da imunidade de rebanho, que chegou a ser defendida por especialistas ligados a Bolsonaro, a médica infectologista afirmou que ela é impossível de ser atingida deixando o vírus circular entre a população. Ela destacou que isso é alcançado apenas pela vacinação.
‘320 dias de silêncio’
Em sua fala inicial, Luana disse que seriam necessários mais de 320 dias caso fosse feito um minuto de silêncio para cada vítima da Covid-19 no Brasil. Ela afirmou que, ao aceitar o convite para o cargo, pediu autonomia para agir de acordo com critérios técnicos e científicos, o que foi garantido pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
— Aliás, mais de 320 dias. Esse seria o tempo em que teríamos que ficar quietos para respeitar um minuto de silêncio para cada uma das mais de 460 mil mortes de Covid-19 no Brasil. Essa é a razão pela qual estou aqui hoje. Para mim, isso é intolerável e toda pessoa deve fazer o que estiver a seu alcance para evitar essa hecatombe — disse Luana, que declarou depois: — Ciência não tem lado. Ciência é bem ou mal feita. É ferramenta de conhecimento para servir a população, prezando a vida e a qualidade de vida.
Luana afirmou ainda, em sua fala inicial, que a pandemia do novo coronavírus é uma crise de confiança:
— A Covid-19 é uma doença ardilosa, mas a pandemia é uma crise e, acima de tudo, uma crise de confiança. Pelos nossos erros todos perdemos a confiança do povo. É imperativo que deixemos o que não presta de lado — disse a médica, criticando “a luta de um contra os outros”.
Luana avaliou que este não é o momento de realizar a Copa América no país. Ela destacou que o uso de protocolos rígidos ameniza os riscos, mas não os anula.
Luana disse que, apesar de não ter sido nomeada ao cargo no Ministério da Saúde, trabalhou como se tivesse sido, sem ter recebido nada por isso. Afirmou que, nesse tempo, viu que havia falha no programa de testagem e rastreamento de pessoas que tiveram contato com quem teve o coronavírus e observou gargalos no programa de vacinação. Ela disse que teve um contato muito rápido com a equipe, mas elogiou Queiroga.
— Meu diagnóstico [do Ministério da Saúde] é condizente com o convite. Encontrei um ministro competente, capaz, proativo. Alguns dias recebi mensagens dele às quatro e meia da manhã. O que eu vi foi um ministro comprometido, com uma equipe próxima dele também comprometido — disse Luana.
Ela também afirmou que o ambiente político no país hoje é tal que muitas pessoas que poderiam ajudar no combate à pandemia no Ministério da Saúde não têm interesse em fazer isso.
O ministro, que assumiu o cargo no fim de março, se esforça para chamar atenção ao que está sendo feito daqui para frente, mas a demissão de Luana poderá dar à oposição a oportunidade de mostrar que as coisas não mudaram tanto, e que Bolsonaro continua interferindo no ministério.
Ao ser indagada sobre quem a teria indicado, a infectologista disse que não sabia. O presidente do colegiado afirmou que “ninguém liga do nada para uma pessoa” para um convite a um cargo. A médica então respondeu que “imagina” que foi feita uma seleção e que foi escolhida por ser qualificada.
Omar Aziz elogiou o trabalho de Luana e disse que há duas razões para vetar a nomeação de um servidor: por envolvimento em corrupção, o que não era o caso dela, ou por questão política, por compactuar com a posição do governo.
— Não estão interessados em quem tem capacidade. Estão interessados em quem compactua com tratamento precoce e imunidade de rebanho — disse Omar.
Luana disse ser importante conscientizar a população com uma mensagem clara e única:
— Nós sabemos que a participação popular é fundamental em todos os países em que houve uma resposta decente à pandemia. Pode ser mobilizada de diversas formas. Em regimes democráticos, a gente faz isso por uma comunicação clara, de mensagem única. Do contrário, as pessoas ficam perdidas. Se cada um diz uma coisa, em quem eu acredito, principalmente se eu não tenho conhecimento técnico para avaliar esse tipo de informação?
Nomeação impedida
A médica, que comparou a hidroxicloroquina a um “neocurandeirismo”, como mostrou O GLOBO, deixou o cargo no Ministério da Saúde dez dias depois de ser anunciada. A saída, que não foi justificada pela pasta ou pela própria infectologista, teria sido motivada por pressões do governo no enfrentamento à pandemia, que não teriam sido aceitas por ela.
— Ele [Queiroga] disse que lamentava, mas que a minha nomeação não passaria pela Casa Civil — afirmou Luana sobre o anúncio que não continuaria na pasta.
O relator, Renan Calheiros (MDB-AL), perguntou se a oposição dela ao tratamento precoce sem eficácia comprovada foi o que impediu sua nomeação.
— Eu acho que essa pergunta deve ser direcionada ao ministro Queiroga. A minha posição pública não é uma opinião. Na medicina a gente tem opinião até o momento em que a gente substitui essa opinião por evidências. Não foi me dada nenhuma justificativa para a minha saída — disse Luana.
Indagada por que a nomeação não saiu antes de ela começar a trabalhar, Luana respondeu:
— O que me foi dito é que existe um período entre a criação da secretaria e o apostilamento de cargos para que minha nomeação pudesse ser publicada no Diário Oficial. Sairia na segunda-feira, não saiu. Sairia na terça, não saiu. Na quarta-feira eu entendi [que não haveria nomeação]. Trabalhei normalmente. À noite fui chamada e avisada que na nomeação não sairia.
Os requerimentos de convocação aprovados pela comissão foram apresentados pelos senadores Humberto Costa (PT-PE) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
— É uma pessoa qualificada, que tem condições técnicas para exercer qualquer função pública. Ela não chegou a ser nomeada. Nós encaminhamos para a instância do governo. Vivemos num regime presidencialista. Eu fui indicado por quem? Por quem de direito, o presidente da República. É necessário que exista validação técnica e validação política para todos os cargos — disse Queiroga no fim de maio.
Inicialmente, estava prevista nesta quarta-feira uma audiência com médicos para debater a cloroquina, mas o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), justificando que uma CPI é dinâmica, mudou o depoimento.
Aziz também anunciou, na sessão desta quarta-feira, que o governador do Amazonas, Wilson Lima, que prestaria depoimento dia 29 de junho, vai falar na quinta-feira da semana que vem.
Com O Globo
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