Um documento da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União), obtido pela Folha, aponta “indícios robustos” de fraude em licitações por parte da empresa que forneceu ao Exército o insumo necessário à produção de cloroquina.
A suposta fraude teria ocorrido em 26 licitações feitas entre 2018 e 2021 —período que abrange a pandemia—, conforme o relatório técnico do TCU de 3 de fevereiro deste ano. Do total, 24 pregões ocorreram de 2019 em diante, no governo Jair Bolsonaro (PL).
Um desses pregões resultou na compra de insumo para produção de cloroquina pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. A explosão da produção ocorreu a partir de um desejo expresso de Bolsonaro, para combater a Covid.
O presidente, um crítico das vacinas, aposta desde o início da pandemia na cloroquina, uma droga usada no combate à malária e sem eficácia comprovada para a nova doença.
Os indícios de fraude foram detectados por auditores no curso de um processo aberto no TCU para investigar suspeita de superfaturamento na produção de cloroquina pelo laboratório do Exército, a explosão de quantidades produzidas na pandemia, e a responsabilidade direta de Bolsonaro na produção.
Segundo o relatório produzido pelos técnicos, a empresa Sulminas Suplementos e Nutrição, contratada pelo Exército para o fornecimento de sal difosfato, participou de licitações voltadas exclusivamente a empresas de pequeno porte. Indícios reunidos pelos auditores apontam, porém, que o grupo do interior de Minas Gerais não se enquadra nessa condição.
“Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na administração pública federal”, afirmou o relatório.
A área técnica pediu a abertura de um processo à parte para investigar as suspeitas de fraude e para ouvir a Sulminas. A decisão caberá ao ministro relator do processo, Benjamin Zymler, que pode submeter a questão ao plenário do TCU.
Em nota, o grupo Sulminas afirmou que as licitações com participação de suas empresas foram de amplo conhecimento e participação pública e que os valores praticados são compatíveis aos de mercado. A empresa disse ainda que os insumos foram entregues em cumprimento estrito a “requisitos de qualidade técnica e analítica necessários, nos termos especificados nos editais”
“O grupo está à disposição das autoridades para prestar qualquer esclarecimento que se faça necessário.”
Segundo o grupo, a Sulminas Suplementos está enquadrada no regime do Simples Nacional. Já a Sul de Minas Ingredientes não está enquadrada no mesmo regime, conforme a nota.
Os auditores do TCU apontaram dois indícios de fraude em licitações, no momento em que a primeira empresa do grupo se apresenta para os pregões como sendo de pequeno porte.
Um dos sócios da Sulminas Suplementos, Marcelo Mazzaro, tem 10% de participação na empresa. Dados extraídos do Sicaf (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores) mostram que Mazzaro tem 90% de participação em empresa do grupo de nome semelhante, a Sul de Minas Ingredientes, conforme o documento do TCU.
A outra sócia, nas duas empresas, é Roseana Mazzaro, conforme os registros públicos da Receita Federal.
“Verifica-se que há o atendimento da primeira condição para aplicação da restrição legal da lei complementar 123/2006”, citou o relatório.
A lei é a que a instituiu o estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte. O inciso citado diz que não pode se beneficiar de tratamento jurídico diferenciado a empresa cujo sócio tenha mais de 10% do capital de outra empresa não enquadrada na lei.
As empresas do grupo Sulminas também extrapolaram o limite de receita bruta para enquadramento como de pequeno porte, conforme o relatório do TCU.
Mais uma vez, foram usados dados do Sicaf. Em 2017, a receita foi de R$ 3,8 milhões. Em 2020, chegou a R$ 12,3 milhões. O limite previsto na lei foi de R$ 3,6 milhões até 2017 e de R$ 4,8 milhões a partir de 2018.
Segundo a auditoria, das 26 licitações com suspeita de fraude, em 15 a Sulminas Suplementos se sagrou vencedora para fornecer itens cuja participação exclusiva deveria ser de empresas de pequeno porte ou microempresas.
Essas 15 licitações foram feitas pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército, pelo Laboratório Farmacêutico da Marinha e por Farmanguinhos (Instituto de Tecnologia em Fármacos), da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Há ainda outros pregões, como um feito pelo centro de aquisições específicas da Aeronáutica.
O Exército e a Marinha não responderam aos questionamentos da reportagem. A Fiocruz afirmou, em nota, que não recebeu o relatório do TCU e que prestará ao tribunal todos os esclarecimentos necessários, dentro do prazo.
A Aeronáutica, também em nota, disse que não é parte do processo e que o planejamento da compra dos insumos farmacêuticos ocorreu em 2019, antes da pandemia.
Dados do portal da transparência do governo federal mostram que a Sulminas Suplementos, fornecedora do insumo da cloroquina produzida pelo Exército, recebeu R$ 6,1 milhões da União, a partir de 2019. Os laboratórios de Exército e Marinha e Farmanguinhos são os contratantes.
A segunda empresa do grupo, Sul de Minas Ingredientes, recebeu R$ 9,7 milhões do governo federal desde 2014. Do total, R$ 6,2 milhões foram pagos a partir de 2019. Os contratantes foram os mesmos.
Para atender a um desejo de Bolsonaro, o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, viabilizou um aumento da produção de cloroquina pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército.
Os recursos começaram a ser destravados dentro da Força, com essa finalidade, em março de 2020. Os gastos do Exército com a empreitada foram de R$ 1,1 milhão.
Segundo a auditoria do TCU, 900 quilos de sal difosfato resultaram na produção de 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020. A última produção de cloroquina 150 mg pelo laboratório do Exército havia sido em 2017: 265 mil comprimidos, a partir de 70 quilos de insumos, segundo o relatório do tribunal.
Folha
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